Pular para o texto

Calma Clima, Cultura e Memória: Os Caminhos de Bernardo Biagioni

“A cabeça pensa onde os pés pisam”
Uma conversa com Bernardo Biagioni sobre trilhas, cidade invisível e o poder de correr com calma

Em tempos de correria, deslocamento acelerado e paisagens cada vez mais concretadas, Bernardo Biagioni segue na contramão. Jornalista, corredor, pesquisador e criador do Calma Clima, ele percorre as ruas, trilhas e serras de Belo Horizonte com um olho no mapa e outro na história — atento não só ao caminho que pisa, mas ao solo que sustenta o tempo.

A seguir, um mergulho em sua trajetória, seus projetos e suas ideias sobre o que significa viver com os pés no chão — literalmente.

Você costuma dizer que caminha desde cedo. Qual foi o seu primeiro contato com o território?
Eu diria que tudo começou com uma mistura: o mato da infância, o mountain bike e, depois, o skate. O skate me deu um olhar urbano, quase arquitetônico — porque todo skatista é um pouco urbanista. Pra quem anda de skate, a cidade é o suporte: o chão, a calçada, a escada, o corrimão. Isso mudou minha forma de ver o espaço.

Dos 15 aos 25, vivi muito essa cidade como skatista. E foi aí que me conectei com a arte urbana — comecei a ler os muros com outro olhar, a me interessar por grafite, por pichação, por pintura de rua. Esse caminho todo me levou ao jornalismo e, mais tarde, ao Quartoamado.

O Quartoamado foi um projeto muito marcante na cena cultural de BH. Como ele nasceu?
Curiosamente, ele nasceu como uma reportagem. Eu trabalhava na Revista Raga, onde fui colunista por cinco anos, fazendo reportagens de viagem. Em 2012, ao escrever sobre arte urbana em BH, percebi uma cena potente ali, acontecendo diante dos nossos olhos. E aí a pauta virou projeto.

O Quartoamado começou como uma galeria que queria estar na rua. Colorir a cidade. Inserir arte no cotidiano. De 2012 a 2020, vivemos momentos incríveis, sempre com foco em jovens artistas e na valorização do que é local.

E o Calma Clima? Quando surge essa virada para o esporte coletivo como ferramenta de conexão?
O Calma nasce em 2017, mas só em 2020 que me volto totalmente pra ele. A corrida sempre foi presente, mas decidi transformar esse gesto em algo compartilhado. Era quase um chamado. A gente corre, sim — mas com pausa, com atenção, com escuta. Não é sobre performance, é sobre presença.

Vamos falar da Trilha Perdidas, que virou símbolo no seu trabalho. Como essa relação começou?
Minha história com a Perdidas nasce quase como uma obsessão. Eu vivia me perdendo por lá. Literalmente. Era comum pegar um desvio sem perceber e acabar no sentido contrário. Isso me irritava e me divertia ao mesmo tempo.

Até que um dia decidi olhar com mais calma — observar cada ramal, cada bifurcação. Comecei a descobrir nomes curiosos: Conto de Fadas, Rachadinha, Morro do Fofão, Lucélia Santos… e fui entendendo que aquilo não era só trilha: era um arquivo vivo.

Durante a pandemia, encontrei a Perdidas num mapa de 1932. Ela constava como estrada de grande circulação. E isso me acendeu: ali havia algo mais antigo. Pesquisando, entendi que esse caminho conecta Macacos a Curral del Rey e pode ter sido usado por sertanistas, bandeirantes e antes por povos originários.

Por que você chama a Perdidas de “mãe de todas as trilhas”?
Porque ela é tudo isso: geografia, memória, desafio técnico, paisagem e história condensadas. Muitos ciclistas, corredores, motoqueiros e jipeiros passaram por ali. É uma trilha que forjou caráter. E mais: é conectora. Liga bairros, cidades, gerações.

É também um território de nascente, que abastece o Ribeirão dos Cristais. E isso a torna ainda mais simbólica: é corpo d’água, caminho, memória e vida. Perdidas precisa ser preservada porque é documento vivo da nossa história.

Você fala muito sobre a “cidade invisível”. O que é isso?
É um conceito que venho elaborando a partir de uma constatação triste: somos formados por uma lógica de extração. O “brasileiro” vem do pau-brasil. O “mineiro” do minério. Nossa identidade está ligada a tirar — e não a cuidar.

Em Belo Horizonte, esse processo se revela de forma muito nítida. Tapamos nossos rios, ignoramos nossas montanhas, apagamos nossos horizontes. Criamos uma cidade racional, planejada para eficiência — mas esquecemos do afeto. O resultado é esse discurso de que BH “não tem nada”, quando, na verdade, tem tudo.

Tem trilha, tem serra, tem história, tem paisagem. Só falta enxergar. E é aí que o esporte, a cultura e a educação entram: pra redescobrir.

Como surgiu a ideia do canal no YouTube e da “pesquisa-terapia”?
A pesquisa é um processo solitário. Assim como correr. Compartilhar isso virou uma forma de organizar as ideias — e também de encontrar outras pessoas que carregam camadas que eu não conhecia. Cada vídeo que publico traz de volta um pedaço da cidade que alguém carrega.

Chamo de pesquisa-terapia porque é isso mesmo: botar pra fora, dar forma às ideias, abrir conversa. E o mais bonito é que isso gera troca. O conhecimento vira afeto. Vira rede.

Você já trabalhou com marcas como Nike, Coca-Cola e Heim. Como foi isso?
Foi natural. O Calma nasceu com propósito — e não por demanda de mercado. Levou cinco, seis anos até a gente aceitar ter uma marca como parceira. A relação com a Nike, por exemplo, só aconteceu quando ficou claro que o propósito se manteria.

E o que aprendemos é que dá pra contar grandes histórias sem sair de casa. Não precisamos estar em São Paulo ou no Rio pra fazer algo relevante. BH é suficiente. Nosso território tem tudo. Basta acreditar.

E o futuro? Quais são seus planos?
O Quartoamado segue com o Gregório, meu grande amigo, mantendo o foco em jovens artistas. Eu sigo no Calma. Nosso projeto mais ousado? Correr por todas as ruas de Belo Horizonte.

Mas o foco não é quantidade. É qualidade. Não importa se seremos mil ou vinte. O que importa é seguir fiel ao propósito de enaltecer BH, com respeito ao território, ao trânsito, aos moradores. E continuar com calma, sempre.

Por fim: se pudesse deixar uma mensagem pra quem quer se reconectar com a cidade, qual seria?
A cabeça pensa onde os pés pisam. Caminhe. Pise com intenção. Vá até o córrego que você não enxerga. Sinta o cheiro da serra. Toque o chão. Olhe o mapa como se fosse a primeira vez.

Ser turista no próprio território é reencontrar a criança que se encanta com o mundo. E quando a gente se encanta, a gente cuida.

Outras Noticías...